FONTE: CONJUR
Os desnecessários pedidos de informações em HC na era dos processos eletrônicos
Por Fabrício Reis Costa e André Ramos Rocha e Silva
Muito se escreve sobre os limites de cognição do magistrado, hipóteses de cabimento e teses a serem desenvolvidas no Habeas Corpus. No entanto, pouco ou quase nada tem sido falado sobre a prática procedimental desse tão importante remédio constitucional, principalmente à luz das inovações tecnológicas que permeiam o Direito atualmente.
Não é de hoje que os advogados, juízes e membros do Ministério Público se deparam com questões relativas à desmaterialização dos autos processuais. Se em meados da década de 1990 a utilização de computadores passou a ser amplamente difundida para o público em geral, os anos 2010 trouxeram ao cotidiano forense os processos eletrônicos ou digitais, nas mais variadas plataformas utilizadas pelos sistemas de Justiça brasileiros (PJe, E-saj, SEEU, Eproc e outros).
Essas inovações, na maioria das vezes, trazem maior tranquilidade aos atores do sistema processual e, sobretudo, maior celeridade na tramitação dos processos. Basta observar os números do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para concluir pelo aumento da agilidade judiciária com os processos eletrônicos [1]. No entanto, não se pode fazer vista grossa a uma estagnação que ainda hoje existe principalmente na prática da marcha processual dos Habeas Corpus: o eloquente e nada eficaz despacho dizendo “requisitem-se informações à autoridade coatora”.
É justamente disso que se pretende tratar: a injustificada imposição de morosidade à análise dos writs ocasionada pela requisição de informações ao juízo a quo.
A prática de requisição de informações é antiga em nosso ordenamento jurídico, mormente quando tratamos das ações constitucionais, como é o caso do mandado de segurança e do próprio Habeas Corpus aqui discutido.
Veja que esse hábito fazia sentido em um contexto de procedimento físico, no qual o encarte da integralidade dos autos em acompanhamento à inicial do Habeas Corpus era atividade bastante dificultosa. Tratava-se, assim, de uma garantia do julgador, para que se inteirasse efetivamente da situação dos autos, resguardando-se contra eventuais exageros ou imprecisões contidas no remédio constitucional.
Entretanto, é importante dizer que o embasamento legal desse instituto está posto de forma indireta no Código de Processo Penal (CPP). Pois, em um primeiro momento, tem-se o artigo 656, que traz ao julgador a faculdade de determinar a apresentação do paciente — medida em absoluto desuso e que, na prática, dificultaria o cotidiano forense. Ainda, em seus artigos 662 e 664, o mesmo diploma legal ressalta a facultatividade da requisição do pedido de informações [2].
Percebe-se, assim, que o instituto já nasce como uma opção excepcional, a todo o tempo tratada como mera faculdade, e não como uma regra procedimental a ser seguida em todo julgamento, conforme se observa na prática.
Aliás, a desnecessidade das informações prestadas em sede de Habeas Corpus é ressaltada pelo fato de que o ato coator, em regra, deveria bastar em si mesmo. Em outras palavras, a fundamentação utilizada pelo magistrado que proferiu a decisão combatida deve seguir os limites de cognição e exposição de motivos dispostos no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal e no artigo 315, §2º, do Código de Processo Penal.
A pergunta retórica aqui é bem-vinda: se a decisão não possui em si própria todos os requisitos necessários a se colocar em pé sozinha, para o que serviriam as informações prestadas ao órgão ad quem? Seria isso uma espécie de emenda à decisão ou contestação — redigida pelo juízo a quo — à inicial de impetração do Habeas Corpus? Veja que, em ambos os casos, estaríamos diante de uma atuação indevida do Judiciário.
Nota-se, assim, que aquilo em outros tempos se tratou como “método de aferição de veracidade” nas alegações ventiladas pelos impetrantes do remédio constitucional, atualmente se trata apenas de burocracia ou vício procedimental.
Isso fica ainda mais claro quando pensamos na realidade atual do processo eletrônico. Ora, na medida em que o acesso aos autos pelo julgador do Habeas Corpus pode ocorrer das mais diversas maneiras, e de forma instantânea (dinamicidade muito bem trazida pelos processos com tramitação virtual), a requisição e consequente prestação de informações se torna desnecessária.
A título ilustrativo, suponha-se o desembargador de um Tribunal de Justiça que se veja diante de um mandamus impetrado com o fito de obter a revogação de prisão preventiva decretada por força de decisão de juiz de primeiro grau, o mais banal e corriqueiro exemplo do manejo de Habeas Corpus nos tribunais brasileiros. Pois bem, nesse caso, para apreciar com a acuidade necessária a tão importante pleito, diante dos processos eletrônicos modernos, para que preenchesse o fim último do pedido de informações, bastaria que o magistrado ad quem: a) verificasse a possível juntada da íntegra dos autos originários à ação constitucional como se um documento fosse, fato esse que comumente realizado, ainda que por diligência e liberalidade do impetrante; ou b) acessasse a íntegra dos autos da ação originária por meio do sistema informatizado utilizado pelo referido tribunal, posto que possui as ferramentas e senhas necessárias para o acesso ao grau a quo.
Diante das duas possibilidades acima referidas — sendo certo que a primeira depende da iniciativa do impetrante e a segunda da presteza do magistrado —, conclui-se pela desnecessidade do mencionado pedido de informações. Aliás, e para fazer coro a esse entendimento, é fundamental reconhecer que a aferição da veracidade dos fatos ventilados na inicial de impetração se daria de forma muito mais efetiva com o uso dos mencionados expedientes — afinal, a autoridade coatora, evidentemente, discorda das razões da impetração do Habeas Corpus e prestará informações enquanto tal.
É de se apontar que a mencionada “aferição de veracidade” se dá por via da atuação ministerial. No procedimento dos Habeas Corpus, há a ampla possibilidade de manifestação do Ministério Público, que poderá contestar os fatos trazidos pelos impetrantes, sendo método mais efetivo que afasta a atuação do magistrado como “parte”.
Nessa toada, acrescenta-se que a simples adoção dos expedientes mencionados evitaria, inclusive, a situação excepcional — criticável, porém ainda existente — de quando a autoridade impetrada vai além da mera discordância e decide “advogar” sua própria decisão perante o juízo que solicitou informações, apontando razões, novas ou não, para manutenção daquele decisum mitigador da liberdade. Como mencionado anteriormente, havendo os pressupostos de fundamentação na decisão original, não há motivos para que a autoridade coatora torne a revolvê-los ou tente dar maior força a eles.
À guisa de conclusão, tem-se a premente necessidade de atenção dos advogados para incluírem em todas as suas peças de Habeas Corpus dois elementos: a) a íntegra dos autos da ação originária, com destaque para o ato coator; e b) o pedido expresso de dispensa de informações, dado o caráter digital dos autos originários e a disponibilidade de qualquer das informações que venham a ser prestadas já nas cópias juntadas, sempre em homenagem à celeridade que o feito impõe.
Por parte do magistrado, esperam-se também duas providências: a) o acatamento do pedido defensivo com a consulta aos autos eventualmente juntados pelo impetrante; e b) em caso de falha defensiva na juntada dos documentos, que o próprio magistrado diligencie aos autos virtuais disponíveis no sistema informatizado, obtendo ali todas as informações que poderia, possivelmente, reputar importantes.
Não se pode supor a entrada do mundo do Direito na era digital de maneira fragmentada. Ou se utilizam todas as ferramentas disponíveis para o célere andamento dos feitos — notadamente aquelas que beneficiem as garantias individuais e a liberdade humana — ou se estará diante de um uso oportunista e enviesado das novas tecnologias.
A ausência de previsão legal para a tomada dos cuidados aqui referidos, seja por parte do impetrante, seja por parte do magistrado, não os exime da cooperação processual enquanto atores processuais, nos termos do que dispõe o artigo 6º do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável aos feitos penais. Fica, ainda, a lição ao legislador para, em momento oportuno, balizar os limites do inútil pedido de explicações, dando às partes a obrigação de criar um ambiente propiciador de decisões mais céleres. Afinal, no auge da era da informática e das comunicações instantâneas, não se pode admitir que a cognição de um pedido da urgência de um Habeas Corpus seja atrasado em dias — ou, em alguns casos, até semanas —, pela morosidade no envio de informações que já se encontram perfeitamente disponíveis ao magistrado ad quem.
[1] O tempo de tramitação em cartório, por exemplo, foi reduzido em 48%, cf. OTONI, Luciana. Processo Eletrônico (PJe) tem tramitação mais rápida no Judiciário. Agência CNJ de Notícias, 14/03/2018, disponível em < https://www.cnj.jus.br/processo-eletronico-pje-tem-tramitacao-mais-rapida-no-judiciario/>.
[2] Cf. afirma também BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal – 4ª edição ver. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, pp. 961-962.
Fabrício Reis Costa é mestrando em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – Largo São Francisco, advogado no escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados Associados.
André Ramos Rocha e Silva é pós-graduando em Criminologia pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais/ ESA-OAB, advogado no escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados Associados.
Revista Consultor Jurídico, 6 de setembro de 2021
https://www.conjur.com.br/2021-set-06/opiniao-pedidos-informacoes-hc-processo-eletronico