Em artigo publicado na revista Consultor Jurídico, o advogado Giuseppe Cammilleri Falco, do AVSN Advogados, trata do debate em torno da chamada “omissão imprópria”, à luz do direito penal, em face de recentes acontecimentos, levando-se em conta os direitos e deveres de pessoas envolvidas em atos em que se deve apurar as devidas responsabilidades.
Janeiro de 2023, o mês da omissão imprópria
Por Giuseppe Cammilleri Falco
O primeiro mês do ano de 2023 sequer chegou à segunda quinzena e já observamos, ao menos, dois casos de alcance nacional em que se debate, ou certamente irá se debater, sobre a modalidade da chamada “omissão imprópria”. Sem querer fazer qualquer juízo atributivo sobre os casos (até por isso não os identificamos neste escrito), o presente artigo é motivado pelo fato de que os mais diversos veículos de mídia (não somente os especializados) vêm tratando do termo omissão imprópria, o qual — até aqui — somente se ouvia nas faculdades de Direito, mais especificamente, nas aulas de Direito Penal Parte Geral. Então, o objetivo é desenhar da forma mais clara possível o que é omissão imprópria e como identificá-la, sem maiores aprofundamentos teóricos que são muitos neste tema. Assim, talvez, quando ouvirmos novamente esta expressão saberemos ao que se refere.
O Direito Penal moderno aborda as relações sociais, inclusive as criminosas, por meio de uma interação entre direitos e deveres. Segundo essa abordagem, para a boa convivência da sociedade a todas as pessoas são atribuídas uma lista de direitos e deveres a serem respeitados. Veja, se todos têm o direito de não ter sua integridade física violada, por consequência, todos têm o dever de não desenvolver condutas que violem a integridade física do outro. Logo, quando a lei penal diz ser crime “matar alguém” (artigo 121 do Código Penal) comunica que as pessoas têm o dever de não desenvolver condutas que matem pessoas.
Porém, em alguns casos, a lei penal determina ser crime uma conduta omissa, ou seja, a lei diz ser crime não realizar uma conduta. Portanto, existem deveres negativos, que determinam que as pessoas se abstenham de agir, e deveres positivo, que determinam que — em certas circunstâncias — as pessoas desenvolvam condutas. Em síntese, quando a lei penal descreve como criminosa uma conduta comissiva, exige que as pessoas se abstenham de agir naquele sentido. De outro lado, quando a lei penal descreve como crime uma conduta omissiva, exige que as pessoas desenvolvam condutas ativas.
O artigo 13, caput, do Código Penal estabelece que somente será atribuído o delito à pessoa que deu causa ao resultado punível. O texto ainda especifica que se considera causa a comissão ou omissão sem a qual o resultado não ocorreria. A leitura pouco atenta ao texto do Código Penal pode levar a uma conclusão elementar vinculada, unicamente, ao nexo de causalidade entre comissão ou omissão e o resultado punível. Ora, aquele que com um movimento corporal danifica um patrimônio público, atuou de forma comissiva, afinal, sem a tal conduta o patrimônio público estaria intacto.
Nesse sentido, o mesmo valeria aos atos de omissão. Ou seja, aquele que deixa de fazer algo e, por conta disto, leva-se a um resultado danoso, estaria da mesma forma contribuindo ao nexo de causalidade da conduta e, por isso, incorrendo na conduta criminosa.
Seguindo essa lógica, todos aqueles que estão na praia e observam um banhista se afogar até a morte nas águas que banham a mesma praia incorrem na prática do crime de homicídio, afinal, se algum desses tivesse empenhado esforços para salvar o banhista, ele não morreria. Ou seja, a conduta omissiva de não salvar o banhista levou causalmente ao resultado morte.
No entanto, o §2º do mesmo artigo 13 do Código Penal restringe a relevância penal das condutas omissivas àquelas em que a pessoa devia e podia agir para evitar o resultado. Esse dispositivo, chamado de cláusula de equiparação entre a conduta comissiva e omissão, embora continue referindo-se ao resultado (o que somente auxilia aos casos em que há resultado material), põe foco no “poder” e no “dever” de agir.
Neste ponto surgem diversas perguntas que vêm ocupando as ciências jurídico-criminais e rendido milhares de páginas escritas pelos mais brilhantes juristas e pensadores. Por exemplo: qual a norma legítima e capaz de atribuir a alguém o dever agir? Uma norma não jurídica ou não jurídico criminal detém tal legitimidade? Como atribuir dolo ou culpa sob as condutas desenvolvida na modalidade de omissivas? Como atribui-se autoria em crimes omissivos, em especial os omissivos impróprios, quando existe concurso de pessoas? Dentre tantas outras que, como essas, não pretendemos responder, mas mostram a complexidade de atribuição de crime por meio da omissão. O que nos interessa é uma formulação mínima de identificação da possibilidade de responsabilização penal pela chamada omissão imprópria.
Em primeiro lugar, deve-se partir da diferenciação formal dos crimes de omissão própria para os crimes de omissão imprópria. Os primeiros são aqueles em que o próprio tipo penal traz a descrição de uma conduta omissiva, em que, portanto, já existe — em si — um dever de agir. Logo, quando se diz crime sonegar informação financeira de investidor (artigo 6º da Lei 7.492/86), por lógica, se está a repreender uma conduta omissiva, qual seja, não informar informação financeira a investidor. Nesses casos, já há claramente, por ordem do tipo, o dever de agir conforme o direito, no caso, o dever de prestar informação financeira ao investidor.
Os casos de omissão imprópria, por definição, são aqueles em que se atribuem à pessoa que se omite crime cuja descrição típica seja comissiva. Por exemplo, atribuir ao agente público o crime de dano qualificado pela danificação de prédio público, descrito tipicamente como conduta comissiva, sob o fundamento de que este agente tinha o dever de resguardar a segurança do prédio público.
Nessa circunstância, para além da descrição típica, percebe-se que o risco ou o dano causado não adveio diretamente da conduta omissiva. Então, diversamente da omissão própria, na modalidade chamada de imprópria a conduta omissiva, em si, não é a criadora do risco ou do dano.
Ora, se tipo penal descreve conduta comissiva e se a pessoa não é responsável pelo risco criado, como pode-se atribuir-lhe o delito sem violar sua liberdade individual? Afinal, o que se está dizendo é que será criminosa a conduta de “nada fazer”.
A resposta desta pergunta é a terceira característica, e me parece principal, da omissão imprópria que é o dever e o poder de evitar o resultado, termos expressamente grafados no artigo 13, §2º, do Código Penal.
O termo “poder agir” vincula-se à possibilidade real de agir para evitar o resultado. De modo que, não se pode atribuir, por exemplo, ao operário de uma montadora de veículos, a conduta de falsa prestação de informações contábeis a investidores, pois esse funcionário sequer tem acesso à contabilidade da empresa onde trabalha.
No que se refere ao “dever”, o texto legal determina, em verdade, que a omissão somente é penalmente relevante quando existe um dever jurídico que lhe obriga a agir. Do contrário, estaríamos a atribuir condutas criminosas pelos danos ou riscos criados por outras que sequer interagiram no fato, alargando ao léu o alcance da norma penal. Logo, “o omitente não responde por ter criado risco, mas por não agir quando tinha obrigação de fazê-lo” [1].
Por fim, esse dever é sustentado pela assunção do agente acerca de sua posição de responsável por impedir o resultado (artigo 13, §2º, aliena ‘b’, do Código Penal) ou na determinação legal de dever de cuidado, proteção ou vigilância (artigo 13, §2º, alínea ‘a’, do Código Penal). Então, o dever de agir pode advir da escolha ou aceite da pessoa em ocupar posição que lhe impõe determinados deveres, por exemplo, a secretaria de um Estado.
O importante é que essa posição, em primeiro lugar, o diferencie em deveres das demais pessoas e que um desses deveres seja o de agir para evitar risco ou danos em razão de conduta alheia. Ou seja, ao guarda-vidas de uma praia são atribuídos deveres, por assunção e/ou por lei, diversos dos demais banhistas, entre esses, o de salvar pessoas em situação de afogamento.
Em rasteiro resumo, para identificar uma modalidade de omissão imprópria deve-se atentar: 1) à descrição típica, que não será de uma conduta omissiva; 2) à origem do risco, que não será criada pelo omitente; 3) ao dever de agir, o qual será fundamentado em sua assunção ou pela lei e o diferenciará das demais pessoas.
Quer me parecer que com esses critérios poderemos, senão resolver, ao menos clarear os casos que já ocupam os jornais neste janeiro de 2023.
Nota:
[1] RODRÍGUEZ, Victor Gabriel. Reflexões sobre a omissão imprópria. In: SILVEIRA, Renato de Mello Jorge; NETTO, Alamiro Velludo Salvador; SOUZA, Luciano Anderson (coords.). Direito penal na pós-modernidade: escritos em homenagem a Antonio Luís Chaves de Camargo. São Paulo: Quartier Latin, 2015. cap. 24, p. 485/501. p.488
Giuseppe Cammilleri Falco é advogado criminalista do escritório Alamiro Velludo Salvador Netto Advogados, presidente da Comissão de Direito Criminal, Política Criminal e Penitenciária da 12ª Subseção da OAB de Ribeirão Preto — Seção de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 13 de janeiro de 2023
https://www.conjur.com.br/2023-jan-13/giuseppe-falco-janeiro-2023-mes-omissao-impropria